Eu tenho dificuldade em manter algo fixo, sempre que tudo parece igual demais tenho a vontade de cortar o cabelo, fazer outras amizades e aprender coisas novas, mas sempre morei no mesmo lugar e nunca senti a necessidade de mudança. Pelo contrário, sempre que meus pais sugerem em se mudar, eu não contesto, mas também não me animo. Sair daqui seria como deixar para trás uma parte de mim, abandonar quem eu sou. Talvez seja porque mesmo vivendo na mesma casa durante tanto tempo, ela evidencie tudo que tenho de diferente em minha vida desde a época em que cheguei - com 6 anos de idade.
Tenho vagas lembranças do dia exato que visitamos o apartamento pela primeira vez. O condomínio ainda estava sendo construído, compramos na planta assim como diversas outras pessoas, visto que o bloco que queríamos já estava com quase todos os ap’s ocupados, então meu pai escolheu um no quarto andar contra a vontade dele. Não demorou muito para recebermos a chave do apartamento e se mudarmos do centro da cidade para um bairro distante, bem diferente do que estávamos acostumados. Então ali estava eu, meus pais e meu irmão mais velho, morando em um lugar sem sabermos que este acompanharia muitas etapas da nossa vida, e que, se as paredes falassem, elas nos diriam o como também são integrantes essenciais da nossa família, que também cresceram e mudaram junto com a gente.
Foi na sala de estar que eu frequento até hoje, em um sofá vermelho (que foi doado à minha tia) que minha mãe anunciou que estava grávida do meu irmão mais novo. Foi nessa mesma sala que, na batente da porta, marcamos nossas alturas e nosso crescimento de ano em ano, que inclusive ainda está lá no mesmo lugar. E agora, toda vez que olho pela janela, eu lembro de que por volta dos meus 8/9 anos de idade eu precisava de uma cadeira para enxergar lá fora, afinal, meus olhos não chegavam nem no começo dela.
Além disso, toda vez que eu escovo meus dentes eu lembro que eu ficava imaginando como seria escovar se olhando no espelho como sempre via minha mãe fazendo, visto que, por muito tempo eu sequer conseguia me enxergar nele por conta da minha altura, e agora, eu me vejo com facilidade, e o espelho nunca mudou, eu que cresci. Lá embaixo, onde eu passo todos os dia ao sair, foi onde fiz minhas primeiras amizades. O morrinho que olho de relance, mas que faz meses que sequer chego perto, foi onde desenvolvi minhas memórias mais marcantes, escalando e pulando lá de cima (eu me sentia o máximo). Os porteiros que eu dou bom dia e boa noite quando saio e chego da escola já não são mais os mesmos que eu pedia água depois de correr uma maratona brincando de ‘zumbilândia’. A piscina, que dificilmente eu vou hoje em dia, foi onde eu aprendi a nadar. A rua de frente para a portaria, foi onde eu tirei as rodinhas pela primeira vez e aprendi a andar de bicicleta sozinha.
Esse condomínio com o passar do tempo foi tornando-se pequeno demais para mim, porque ele está recheado de lembranças especiais, lotado de uma profunda nostalgia que eu embarco toda vez que meu olhar paira sobre qualquer canto desse lugar, e eu não sei se quero me livrar disso.
Saudade é um sentimento dolorido, e tudo me dói porque eu sinto muita falta. Eu sinto falta das minhas amizades, que estranhamente ainda as vejo de vez em quando. Eu sorrio e aceno, mas não muda o fato de eu não conhecer mais essas pessoas, sendo se já frequentei suas casas, conheci suas famílias, fui confidente de seus segredos e agora, são só resquícios de vagas memórias. Eu sinto falta da minha infância e principalmente de mim mesma. Eu sinto falta daquela criança inocente que não tinha medo de viver, que fazia besteira e não sentia culpa. Eu sinto falta do meu olhar do mundo, quando tudo era uma possibilidade e diversas ramificações de destinos não me assustavam e sim me davam esperança.
Aqui, eu vi meu irmão dar seus primeiros passos, agora, ele tem de vida o tempo que tenho vivendo nessa casa. É estranho saber que ninguém veio antes da nossa família, quando chegamos as paredes estavam todas brancas e o lugar inteiramente vazio, mas tínhamos perspectiva, enxergávamos um lar. Com o tempo, fomos construindo nosso lugarzinho e deixando nossas marcas. Todos os riscos nas paredes, as quinas descascadas, os buracos que furamos para pendurar quadros, indicam que nós estivemos aqui, e se um dia calhar de se mudarmos, uma nova família habitará esse local e jamais terá noção de tudo que passamos morando nele, isso me assusta. Essas particularidades contam histórias, mas só para aqueles que viveram elas tão de perto.
Uma lembrança que sempre vêm-me à mente é a de eu sentada em cima da caixa d’água com uma amiga, eu estava no nono ano e ela no oitavo e estávamos conversando sobre o futuro. Eu comentava o quanto era estranho que daqui há um ano eu iria para o ensino médio, ela riu, e disse que não tinha uma imagem minha sendo “madura”, não me imaginava lidando com tanto, o que é engraçado, porque agora eu lido com ‘muito e mais um pouco’ e já não se falamos mais para que ela saiba disso. Eu conheci ela assim que cheguei no condomínio, típicas amigas de infância, ela me assistiu crescer assim como eu também acompanhei o crescimento dela, e naquele momento, olhando para o nada, eu pude sentir o medo do futuro na pele.
Com 13 anos de idade eu sabia que a partir daquele dia tudo iria mudar de alguma forma, não que já não estivesse mudando, mas a alteração pareceu bem mais palpável e assustadora. Brincávamos: ‘‘Será se ainda vamos ser tão próximas?’’ ou ‘‘E se pararmos de se falar no futuro?’’ e durante muito tempo estas foram frases vazias visto que eu não imaginava viver uma vida sem frequentar a casa dela e vê-la todo dia, era tão comum que parecia ridículo a ideia de isso não ser mais cotidiano. Agora, já não é mais rotina, na verdade, é uma realidade tão distante que eu acho graça da minha ‘eu’ de 3 anos atrás. Esse sentimento me ocorreu diversas vezes, já que tive diversas amigas de infâncias que agora são meras presenças que cumprimento com um aceno ou troco uma mensagem no Instagram de vez em quando.
Experimentar o incerto e se dar conta disso é amadurecer, e mesmo tendo provado desse gosto amargo, eu sinto em reconhecer que ainda estou verde. Ainda vivo como se nada fosse mudar, eu ainda reproduzo as mesmas frases vazias, mas agora com outras pessoas. Após o fim do ensino médio, mesmo eu tendo consciência de que irá acontecer, de que tudo irá mudar outra vez, eu sei que ainda assim será um choque, porque crescer nunca será familiar, se manter no mesmo é aconchegante e é por isso que eu amo minha casa. Eu adoro esse mesmíssimo lugar inalterável que já se metamorfoseou diversas vezes, ele me recorda constantemente que eu cresci, mas algo dentro de mim ainda é o mesmo, eu mantive minha essência. Essas paredes que já foram de infinitas cores, os móveis que já foram deslocados de lugar mais vezes do que posso contar, sempre serão os mesmos, apenas apresentados de formas diferentes, e eu gosto de me segurar nisso. Viver aqui é como receber uma constante lembrança do Facebook de ‘tantos anos atrás’, é saber que o mesmo lugar que um dia eu chorei por ter ralado o joelho brincando, é o mesmo que ressoa meus lamentos em relação ao vestibular.
Todos os dias eu encaro um passado tangível, sinto o gosto do tempo e isso ainda me estabiliza. Eu ainda sou aquela criança que tinha medo do bicho-papão, só que agora, ele tomou formas muito piores do que simplesmente um monstro.